sexta-feira, 20 de março de 2015

O Contador de Histórias também tem seu Dia

Hoje, 20 de março, é o Dia do Contador de Histórias. Nós, seres humanos, rotineiramente, dividimos com pessoas próximas causos e experiências de vida que se relacionam diretamente com aquilo que guardamos na caixola. É na experiência compartilhada que a memória se fortalece. Quando fazemos comentários do tipo: "lembra-se daquela viagem..." e recebemos de algum amigo ou ente querido um sonoro: "Claro que lembro!” atribuímos à memória ares de socialização.

Volta em meia, conto em sala de aula que minha avó faz o esforço de encontrar os amigos ainda vivos, mesmo que em um velório ou sepultamento, não só para velar o corpo daquele que se vai, como também para reviver momentos de um passado longínquo e extremamente saboroso com aqueles que ainda estão vivos. É habitual escutar dela, depois que volta desses encontros, comentários sobre as idades dos amigos, a ordem dos próximos a serem sepultados e os "fura-filas" que, mesmo mais jovens, foram "chamados" a partir antes. Pode parecer que vozinha seja apenas uma "figura", mas faz muito sentido todo o esforço dela de recontar histórias para se manter viva, mesmo em ambientes em que a morte torna-se tão presente. A memória só faz sentido, diz ela, se compartilhada. Assim, traz-se o testemunho e a comprovação, a la São Tomé, de que os fatos relatados aconteceram mesmo.

Um aspecto interessante da contação de histórias é que ela torna imperativa a oralidade. Ou seja, antes mesmo da escrita e de toda a aura em torno do registro, a fala - como uma evolução do processo não verbal de comunicação - é tida como o instrumento que nos diferencia dos demais seres. Concatenar ideias e traduzi-las em um código que, apesar de dinâmico, pode ser compartilhado é algo realmente significativo.

Hoje, contar histórias pressupõe a imaginação mediada pela escrita. É amparado no livro e no que nos diz o autor das tais palavras, que a gente faz caras e bocas, entoa frases, traveste-se de diferentes personagens e deixa a imaginação, mesmo que não completamente livre, seguir o rumo que a liberdade nos apontar. Há quem diga que a gente perde memória com o registro escrito. De fato, mesmo dirimindo-se do exagero dos apocalípticos, quantos de nós guardamos de cabeça os números dos telefones dos familiares ou citações inteiras de poesias e músicas que dão o tom de muitos momentos significativos de nossas vidas? Poucos ou iluminados, como minha esposa, que tem memória de elefante. Quem sofre sou eu (risos), obviamente, nas discussões - raras, ainda bem - que temos. Ela sempre lembra mais do que eu, com falas e pormenores, das coisas que ocorreram.

Mas de tudo o que disse até agora, nada é mais empolgante que contar histórias para uma criança. Liberta de referências preconceituosas ou mesmo de pudores que minam a imaginação, uma criança, se estimulada, vai longe. Tão longe que diariamente quer passear pelos mesmos personagens ("conta novamente a história desse livro, papai") e incorpora a cada viagem uma nova palavra, um novo detalhe, como se apurasse o olho, a fala e a imaginação para novas experiências, daquelas bem dinâmicas que só a fala nos permite ter. Elisa, por exemplo, está vidrada nos livros. Pede para carregar um diferente todo dia, conta para si mesma as histórias, lida com os medos e com as brincadeiras, escolhe quem quer ser e se veste dignamente dos valores dos personagens.

Hoje, por exemplo, foi pra escola dizendo que era a Branca de Neve e, de tão Branca de Neve que é, saiu segurando a barra direita do calção da escola como se fosse a saia do vestido de gala da tal princesa. Espero que eu tenha sido o chofer dessa carruagem encantada e encantadora.


O Dia
O Dia do Contador de Histórias é comemorado desde 1991, com o objetivo de reunir os contadores de todo o mundo.

Bom projeto de incentivo ao hábito da leitura
O Itaú tem um projeto dos mais interessantes de incentivo à leitura. Em sua página Itaú Criança a empresa disponibiliza gratuitamente uma coleção de livros infantis, que é atualizada rotineiramente. Além de permitir o acesso a bons livros, abre espaço para que escritores e ilustradores brasileiros publiquem. Excelente projeto de responsabilidade social. Ganho significativo para a imagem da organização.

Ótimo texto sobre o assunto
Eugênia teve um texto sensacional dela sobre a experiência de ler histórias para uma criança publicado no Literatura BR.

4 comentários:

Eleni disse...

Nem vou dizer que minha netinha é encantadora! Que ela é o sol inteiro e não apenas um raio dele. Quero falar da contação de histórias.
Tive a feliz oportunidade de ouvir de um senhor do meu interior todas as histórias do folclore e as criadas por ele. Ficávamos debulhando o feijão na sala de sua casa. Muitas crianças! E ele, inteligentemente, nos entretia com as histórias e usufruia do nosso laboro gratuito.
Mula Sem Cabeça; Saci Pererê; O Príncipe que Virou Sapo; Lubisomem... e tantas outras. Algumas me enchiam de pavor. Mas me fascinavam!
Sei que muitas daquelas histórias contribuiram para a minha formação. São um ponto importante da minha vida. A gente pouco interagia, mas quem controla a imaginação?
Parabéns aos contadores de história! Principalmente aos pais que como o Paulo, se encantam com o encantamento dos filhos através das histórias contadas, recontadas e recriadas.

Gabriel Pontes disse...

Quando vou pedalar no sábado pela manhã observo sem compromisso as coisas que me passam diante dos olhos. Quando algo acontece, marca, positiva ou negativamente. Poucas pedaladas depois paro, pego o celular e anoto, ou gravo. Me distraio e esqueço. De memória confesso que sou fraco, mas sou um bom remoedor (rs).

Se perguntarem minha preferencia quanto a contar minhas histórias ou escreve-las, sempre irei preferir contar. Contar através da fala enriquece de sentimentos e intenções que nem sempre se consegue por na escrita. A escrita limita (triste fato).

Parabéns pelo texto!


Grande abraço.

Paulo Pinheiro disse...

Obrigado, D. Eleni, por partilhar conosco suas histórias e memórias. Volte sempre, por favor. E concordo plenamente: Elisa é o sol inteiro (rs).

Paulo Pinheiro disse...

Meu caro Gabriel, você é um contador de histórias nato! Obrigado pela leitura do texto e por partilhar conosco um pouco do seu processo criativo. Pedalar, observar, gravar ou anotar e redigir (quando a escrita não parecer tão limitante) sempre rende em sua página ótimas histórias. Grande abraço!